Arte de Angela Lergo
'"Que
Deus ouça as preces que lhe dirijo quando estou mansidão e ternura. Quando
estou contemplação e respeito. Quando as palavras fluem, sem esforço algum, sem
ensaio algum, articuladas e belas, do lugar em mim onde eu e ele nos
encontramos e brincamos de roda. Quando nelas incluo as pessoas que têm nome e
aquelas que desconheço existirem. E os meus amores. E os meus desafetos. E os
bichos. E as plantas. E os mares. E as estrelas. E
Que
Deus ouça as preces que lhe dirijo quando o medo me acompanha sem que a coragem
se ausente. Quando as coisas seguem o seu rumo sem que eu me preocupe em
demasia com o destino desse movimento. Quando eu me sinto conectada com o amor
e reverente à vida. Quando as lágrimas nascem apenas de um alegre e comovido
sentimento de gratidão. Quando caminho com a rara confiança que só as crianças
que ainda não doem costumam experimentar, já que, infelizmente, algumas começam
a doer muito cedo.
Que
Deus ouça as preces que lhe dirijo quando sou capaz de pressentir o sol mesmo
atravessando uma longa noite escura. Quando posso cruzar desertos com a clara
convicção de que a vida não é feita somente deles. Quando consigo olhar para
todas as experiências, sem que aquelas que me desconcertam me impeçam de
valorizar as que me encantam. Quando as tristezas que repentinamente me
encontram não atrapalham a certeza da sua impermanência.
Que
Deus ouça as preces que lhe dirijo quando amanheço revigorada e anoiteço
tranquila. Quando consigo manter uma relação mais gentil com as lembranças
difíceis que, às vezes, ainda me assombram. Quando posso desfrutar do
contentamento mesmo sabendo que existem problemas que aguardam eu me entender
com eles. Quando não peço nada além de força para prosseguir, por acreditar
que, fortalecida, eu posso o que quiser, em Deus.
Mas eu
desejo, profundamente, que Deus também ouça as preces que lhe dirijo quando eu
não consigo elaborar prece alguma. Quando a dor é tão grande que minha fala não
passa de um emaranhado de palavras confusas e desconexas que desenham um troço
que nem eu entendo. Quando o medo me paralisa e perturba de tal forma que eu me
encolho diante da vida feito um bicho acuado. Quando me enredo nas minhas
emoções com tanta confusão que parece que aquele tempo não vai mais passar.
Que
Deus ouça também as preces que lhe dirijo quando só consigo chorar e, mesmo
depois de já ter chorado muito, tenho a sensação de ainda não ter chorado tudo.
Quando me sinto exaurida e me entrego a esse cansaço completamente esquecida
dos meus recursos. Há momentos em que a gente parece ignorar tudo o que pode
nos ajudar a lidar melhor com os desafios. Há momentos, ainda, em que a gente
se confunde sobre o local onde, de verdade, os desafios começam.
Que
Deus ouça também as preces que lhe dirijo quando me parece que eu não acredito
em mais nada. Quando sou incapaz de ver qualquer coisa além do foco onde coloco
a minha dor. Quando não consigo articular meus pensamentos nem entrar em
contato com alguma doçura que me faça lembrar das coisas que realmente nos
movem. Quando não lhe dirijo nenhuma prece. Nem com palavras. Nem com um
sorriso enternecido quando dou de cara com uma flor. Com um pôr-de-sol. Com uma
criança. Com uma lua cheia. Com o cheiro do mar. Com o riso bom de um amigo.
Que ele me ouça com o seu ouvido amoroso e me acolha no seu coração, porque é
exatamente nesses momentos que eu não consigo ouvi-lo em mim."
Ana Jácomo
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