Arte de Moritz Stifter
"Tenho um amigo que só lembra coisas
maravilhosas da sua infância, desde um balanço que havia no pátio da sua
casa até os aromas inesquecíveis do café que a avó preparava todas as
tardes. Suas memórias parecem um comercial de panetone. Teve uma vez em
que nós, da turma, nos irritamos com ele.
Vem cá, você não
lembra a vez em que seu pai te colocou de castigo sem razão, da vez em
que você foi o único a não ser convidado para o aniversário de um colega
de aula, da vez em que todos os seus
primos combinaram de fingir que não ouviam nem enxergavam você, de como
você morria de vergonha das espinhas, de quando escutou uma tia chamando
você de filhote de cruz-credo?
Ele respondeu: não.
Ele não lembra essas coisas porque elas não aconteceram, mas certamente
ele vivenciou algumas outras humilhações, teve que engolir raivas,
sentiu-se desprotegido. Só que ele fez uma edição caprichada do filme da
sua vida: deletou os maus momentos e salvou a parte boa, e é somente
sobre ela que comenta com os amigos.
Mesmo a infância mais
idílica tem seu lado soturno. O filho do meio que se sentia
negligenciado pelos pais. A menina que era obrigada a se vestir de
princesinha quando queria mesmo era jogar bola com os garotos. A vez em
que o violão tão esperado não veio: Papai Noel trouxe uma gaita de boca.
Sem falar nas questões barra pesada: fome, abusos, perdas. Todo adulto é
o resultado de uma criança que, mesmo tendo tido avós rechonchudos,
bolos, pracinhas, piqueniques, vira-latas, árvores de Natal e castelos
de areia, teve que ser muito homem antes da hora. Ou muito mulher.
Aí crescemos e há duas opções: ou saboreia-se a vida, ou suporta-se a
vida. Essa sutil diferença de verbo e de postura é consequência do
quanto esse adulto conseguiu entrar num acordo com a própria infância.
Se até hoje ele não perdoou o colega que o difamou na hora do recreio,
se continua acreditando que teve culpa pelo atropelamento do cachorro e
se não se conforma de nunca ter recebido um abraço do pai, vai continuar
arrastando correntes vida afora, preso a um passado que já foi, já era,
e que não vai mudar.
Meu amigo negociou do jeito dele: jura que
nada de ruim o afetou na infância, nada, zero, nem o beijo negado pela
namoradinha do bairro, nem a vez que quebrou o braço na rua e ficou na
porta de casa esperando que alguém chegasse, nem de quando sua mãe
esqueceu de buscá-lo na escola.
Ele conseguiu essa proeza:
superar o fato de sua mãe ter esquecido de buscá-lo na escola no dia em
que completava oito anos. Temos vontade de esganá-lo por ser uma
criatura tão elevada. E ele, rindo, nos chama de crianções, nós que
ainda não aprendemos, como ele, a deixar os dodóis do passado para trás."
Martha Medeiros
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