Arte de Ginette Beaulieu
As cartilagens nunca param de crescer. Os músculos cedem sob os efeitos
da gravidade. Nossa coluna vai adquirindo as torções ao sabor da
expressão corporal, os pés incorporam a forma dos sapatos preferidos, as
mãos traduzem nosso ofício, enquanto na pele se escreve a história da
luz em nossa vida. Com o tempo, tornamo-nos mais estampados, angulosos,
pontudos. Assusta um pouco, mas, se observarmos bem, veremos que isso
não espera a velhice para acontecer. A transformação da nossa imagem é
constante. Como conseguimos um corpo para chamar de nosso se ele não
para de mudar? A imagem é muito mais do que um retrato congelado no
espelho. Ela é a tradução para o corpo daquilo que em termos psíquicos
chamamos de “eu”, “self”, “ego”, os quais são nosso jeito de ser,
consequente da identidade que tivermos construído. Ao longo da vida,
criamos algum tipo de formato próprio, além de que nos movemos
utilizando uma ginga particular, assim de longe alguém que nos conhece
poderá antecipar que somos nós. Repare, o que nos caracteriza são as
marcas do uso! Graças a esses traços, conseguimos nos ver no espelho
sem nos perguntarmos quem é aquela pessoa. Por sorte, o nariz não cresce
rápido como o do Pinóquio, nem acordamos com as orelhas do Dumbo. É
milimétrico, todo dia um pouco, até se tornar uma caricatura de nós
mesmos. Os desenhistas desse tipo de retrato cômico buscam exagerar os
traços sobressalentes, como uma espécie de crítica, mas também de
caracterização inequívoca do personagem. A idade, ao invés de nos fazer
perder a autenticidade da imagem, vai acentuando-a. A beleza está mais
associada ao esboço do desenho do que ao retrato detalhista. O traço
rápido e inicial do alinhavo da imagem é considerado formoso, enquanto
recusamo-nos a ver beleza na obra onde o artista deixou-se trabalhar com
demora. As pálpebras emolduram os olhos, guardam uma história de
olhares, a boca incorpora o hábito de rir, beijar e crispar-se. Tem um
jeito em que nossos braços e pernas gostam de ficar, as gordurinhas
fazem beiço e as costas esquecem a continência. Mas picaríamos em
pedacinhos essa obra se nos fosse presenteada. Preferimos as linhas
intactas. Belo equivale ao sem uso, ao contrário do visual expressivo,
assim como da postura manhosa que se adquire com a idade. Para aprender a
ser alguém e ter um corpo requer tempo. Isso vai na contramão do que
consideramos uma imagem impecável: a que tem a falta de contornos
própria dos que ainda não sabem bem quem são. Só posso chegar à
conclusão que o alvo da nossa admiração é um corpo que não testemunha
pertencer ao seu dono. Não parece estranho, então, que o chamemos de
“objeto”, seja de desejo ou de consumo. Por outro lado, quem aprendeu a
ser alguém de corpo e alma irá tornando-se autêntica e corajosamente uma
divertida e orgulhosa caricatura. Terá um corpo eloquente, que antes
das palavras já conta uma história, cujos olhos já antecipam respostas.
Um corpo usado tem mais gente dentro. Para mim, isso é belo.
DIANA CORSO
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