Arte de Susan Hoehn
Cai a folha, o fruto, o dente, a
chuva. Surge o tesão, as espinhas, a menstruação, o verão. Crescem o peitinho,
a ansiedade, os jeitinhos e as opiniões. Mudam as formas, o clima, o corpo, as
estações.
Passam as horas, os dias, alegrias e
expectativas. Passa o choro de ontem, a ilusão de anteontem, o amor que se
mostrava eterno no ano passado. Passa a chuva e o calor. A compulsão de comer
chocolate, assistir àquele filme, ir para a balada esta noite, ficar com o
gatinho que parecia especial, também passa.
Passam certas necessidades a serem
colocadas a limpo. As qualidades, os defeitos, as metas e planejamentos para o
próximo ano, são passados para a agenda nova.
A adolescente, viçosa e manhosa,
começa a passar hidratantes na pele iluminada e batom nos lábios. Aquelas ondas
tão altas concordam em se aquietar um pouco para você passar com a sua prancha
para além da rebentação.
Nasce a vontade de crescer, ter a
chave de casa, viajar com os amigos, entrar para a faculdade. Conseguir o
diploma e já pensar no mestrado.
Urge ir à praia, comprar biquíni
novo, experimentar o bronzeador cor de mate, tomar um chope geladíssimo na hora
do almoço.
Urge também criar coragem e se
declarar para o professor de anatomia. Dizer poemas em voz alta para
Manoel de Barros, abraçar em sonhos os caleidoscópios de Fernando Pessoa, as
reflexões de Drummond, as delicadezas transparentes de Mário Quintana.
Notam-se os traços do líder, da
mocinha politizada, da rebeldia inconteste, dos iconoclastas declarados.
Registram-se os movimentos do gesto solidário, as virtudes dos ideais
multiplicados. Notam-se a intransigência e a ganância dos políticos, só menor
que suas falácias, tramoias e ardis.
Anoitecem as verdes querências, as
antigas indulgências, as compulsões pelos porres e as ressacas. As
inconsequências, saudosas irresponsabilidades, a certeza de que o universo é
infinito, porém menor que a estupidez humana.
Nasce mais adiante a vontade de
casar, comprar apartamento, e se não der, alugar um, de preferência na zona sul
da sua cidade. Ter um filho é um desejo que nasce invariavelmente. Vem o
primogênito, então, mais parecido com um lindo bebê de borracha, que todos
anseiam apertar e mordiscar.
Nasce ainda a vontade de transar com a mulher do melhor amigo, porque é
proibido proibir. De escrever às escuras uma biografia não autorizada da sua
vizinha, que todas as noites troca de visitantes. Seu apartamento, o porteiro
comenta à boca pequena, mais se assemelha a porta de bar,
ostentando diuturnamente um entra-e-sai fervilhante.
Muda o gosto pela leitura, pela música, como é
legal escutar música clássica, a moda comportada, que dá lugar à irreverência
fashion. Muda o corte de cabelo, a cor das mechas, o tamanho dos seios, com
alguns bem vindos mililitros de silicone. O jeito de andar, de seduzir, de
beijar e se apaixonar.
Mudam as exigências, as compreensões dos defeitos
alheios, a semântica dos conceitos de fracasso, autoestima e amizade. Muda-se o
gesto contido e egoísta para a ação coletiva. As manifestações e passeatas nas
ruas.
O modo mais enérgico de acordarmos o gigante
sonolento, cujo leito tem as dimensões do Brasil. Mudam o tom e o
conteúdo das reivindicações ao governo que nunca-está-nem-aí-para o povo, as
demandas, agora mais claras e incontestáveis.
Sacodem-se os projetos ainda em gestação, as
poeiras do passado, as relações desbotadas, os discursos maquínicos. As poeiras
dos tapetes, as roupas nos varais, as belas ancas, que dançam soltas um forró
delicioso e gingado com um, dentre os inúmeros e afoitos
pretendentes.
Aprende-se a viver mais de mansinho, a morrer sem
estardalhaço, a trocar a costumeira arrogância por duas doses de humildade. A
trancar mentiras feias nas gavetas da consciência. Aprende-se a buscar rotinas
mais éticas, um corpo mais harmonioso, relações mais mágicas e férteis, no amor
e no trabalho.
Aprende-se a dançar um tango vertiginoso, embebido
em estrógenos e testosteronas que circulam sem parar pelos salões da tentação.
Se aceita o envelhecer, a memória preguiçosa, a
vitalidade que decai aos pouquinhos, a comida com menos sal, porque a pressão
não pode subir tanto. Tolera-se refrear a gula, alternar sonhos iridescentes
por outros mais pertinentes. As perdas que doem tanto, as criticas alheias, às
vezes implacáveis. As injustiças tremendas que os correios do acaso remetem sem
aceitar devoluções.
Tolera-se, com tristeza, é verdade, o amigo que
desistiu de você, a falsidade dos outros, a esperteza de alguns que acabam
sendo flagrados, felizmente, por sua intuição em estado de alerta.
Hospeda-se a doença, às vezes insuperável, o tumor
a ser extirpado, a morosidade das horas, a sucessão de exames clínicos, a
austeridade do silêncio, indispensável em certas etapas da existência.
Suportam-se despedidas, longas ou curtas, abandonos
inexplicáveis, o crepúsculo da vontade, em seu estágio mais débil. O lamentável
definhar de sorrisos e acolhidas familiares, histórias esgarçadas pelo medo,
indiferença, inveja e desamor.
Compreende-se a beleza muda e estonteante de
alvoradas. As promessas da natureza, ao oferecer, a quem sabe apreciá-la, seu o
hipnótico balé de pássaros e borboletas de todas as cores. A liberdade no voo
das águias, a elegância das garças e girafas, o faro de panteras à espreita de
pobres alvos distraídos. A amizade buliçosa dos golfinhos, cuja euforia
espalha-se no mar quente e escandalosamente azul.
Descobre-se, por fim, a sabedoria embutida no verbo
crescer. Nos imprescindíveis desapegos diários. Nas despedidas de hábitos
inúteis, situações e pessoas.
Porque afinal constata-se que crescer também é um
pouquinho isso: ir dizendo adeus para as coisas.
Graça Taguti
Nenhum comentário:
Postar um comentário