Arte de Elvira Pyrkova
solidão é fundamental
“Que me desculpem os desesperados, mas solidão é fundamental para viver.
Sem ela não me ouço, não ouso, não me fortaleço. Sem ela me diluo, me
disperso, me espelho nos outros, me esqueço. Sem ela os silêncios são
estéreis e as noites sôfregas, povoadas de assombramentos e desejos
insaciáveis. Sem ela não percebo as saídas, os milagres, os espinhos.
Não penso solto, não mato dragões, não acalanto a criança apavorada em
mim, não aquieto meus pavores, meu medo de ser só. Sem ela sairei por
aí, com olhos inquietos, caçando afeto, aceitando migalhas, confundindo
estar cercada por pessoas com ter amigos. Sem ela me manterei aturdida,
ocupada, agendada só para driblar o tempo e não ter que me fazer
companhia. Sem ela trairei meus desejos, rirei sem achar graça,
endossarei ideias tolas só para não ter que me recolher e ouvir meus
lamentos, meus sonhos adiados, meus dentes rangendo. Sem ela, e não por
causa dela, trocarei beijos tristes e acordarei vazia em leitos áridos.
Sem ela sairei de casa todos os dias e me afastarei de mim, me
desconhecerei, me perderei.
Solidão é o lugar onde encontro a mim mesma, de onde observo um
jardim secreto e por onde acesso o templo em mim. Medo? Sim. Até
entender que o monstro mora lá fora e o herói mora aqui dentro. Encarar a
solidão é coisa do herói em nós, transformá-la em quietude é coisa do
sábio que podemos ser.
Num mundo superlotado, onde tudo é efêmero, voraz e veloz a solidão
pode ser oásis e não deserto. Num mundo tão volúvel, desencantado e
ansioso a solidão pode ser alimento e não fome. Num mundo tão
barulhento, egoísta, atribulado a solidão pode ser trégua e não luta.
Num mundo tão estressado, imediatista, insatisfeito a solidão pode ser
resgate e não desacerto. Num mundo tão leviano, vulgar, que julga pelas
aparências e endeusa espertalhões, turbinados, boçais a solidão pode ser
proteção e não contágio. Num mundo obcecado por juventude, sucesso,
consumo a solidão pode ser liberdade e não fracasso.
Tempo e solidão são hoje os bens mais preciosos, o verdadeiro luxo.
Marque encontros com você mesmo. Experimente. Dê-se um tempo.
Surpreenda-se. Solidão é exercício, visitação. É pausa, contemplação,
observação. É inspiração, conhecimento. É pouso e também voo. É quando a
gente inventa um tempo e um lugar para cuidar da alma, da memória, dos
sonhos; quando a gente se retira da multidão e se faz companhia. Quando a
gente se livra da engrenagem e troca o medo de ser só pela coragem de
estar só. Não falo de isolamento, nem ruptura ou apartamento. Adoro
gente, mas mesmo assim, e talvez até por isso, preciso de solidão.
Preciso estar em mim para estar com outros.
Ninguém quer ser solitário, solto, desgarrado. Desde que o homem é
homem, ou ainda macaco, buscamos não ficar sozinhos. Agrupamo-nos,
protegemo-nos, evoluímos porque éramos um bando, uma comunidade. Somos
sociáveis, gregários. Queremos família, amigos, amores. Queremos laços,
trocas, contato. Queremos encontros, comunhão, companhia. Queremos
abraços, toques, afeto. É a nossa vocação. Mas, ainda assim, revendo o
poeta, ouso dizer: é preciso aprender a estar só para se gostar e ser
feliz.
O desafio é poder recolher-se para sair expandido. É fazer luz na
alma para conhecer os seus contornos, clarear o caminho e esquecer o
medo da própria sombra. Existem pensamentos, orações, sorrisos,
encontros e realizações que só acontecem quando estamos a sós. Existem
curas, revelações, ideias, lembranças que só podem vir à tona quando
estamos sós. Mesmo os momentos compartilhados só serão inesquecíveis se
uma parte nossa estiver inteiramente só para apreender tudo que apenas a
nós se revelará e tocará.
Existe uma pessoa que só conhecemos se conseguimos ficar sós: nós mesmos!
Seja amigo da solidão. Aceite seus convites, passeie com ela, desmistifique-a. Não corra dela, não tenha medo. Desassombre-se.
Ouse a solidão e fique em ótima companhia.”
Hilda Lucas
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