Arte de Paul Lovering
"Boa parte de nossa infelicidade ou
aflição nasce do fato de vivermos rodeados (por vezes esmagados ou algemados)
por mitos. Nem falo dos belos, grandiosos ou enigmáticos mitos da Antiguidade
grega. Falo, sim, dos mitinhos bobos que inventou nosso inconsciente medroso,
sempre beirando precipícios com olhos míopes e passo temeroso. Inventam-se os
mitos, ou deixamos que aflorem, e construímos em cima deles a nossa desgraça.
Por exemplo, o mito da mãe-mártir.
Primeiro engano: nem toda mulher nasce para ser mãe, e nem toda mãe é mártir.
Muitas são algozes, aliás. Cuidado com a mãe sacrificial, a grande vítima,
aquela que desnecessariamente deixa de comer ou come restos dos pratos dos
filhos, ou, ainda, que acorda às 2 da manhã para fritar (cheia de rancor) um
bife para o filho marmanjo que chega em casa vindo da farra. Cuidado com a mãe
atarefada que nunca pára, sempre arrumando, dobrando roupas, escarafunchando
armários e bolsos alheios sob o pretexto de limpar, a mãe que controla e
persegue como se fosse cuidar, não importa a idade das crias. Essa mãe
certamente há de cobrar com gestos, palavras, suspiros ou silêncios cada
migalhinha de gentileza. Eu, que me sacrifiquei por você, agora sou abandonada,
relegada, esquecida? E por aí vai..
Ou o mito do bom velhinho: nem todo velho
é bom só por ser velho. Ao contrário, se não acumularmos bom humor,
autocrítica, certa generosidade e cultivo de afetos vários, seremos velhos
rabugentos que afastam família e amigos. Nem sempre o velho ou velha estão
isolados porque os filhos não prestam ou a vida foi injusta. Muitas vezes se
tornam tão ressequidos de alma, tão ralos de emoções, tão pobres de
generosidade e alegria que espalham ao seu redor uma atmosfera gélida, a
espantar os outros.
E o mito do homem fortão, obrigado a ser
poderoso, competente, eterno provedor, quando esconde como todos nós um coração
carente, uma solidão fria, a necessidade de companhia, de colo e de abraço –
quando é, enfim, apenas um pobre mortal.
Falemos ainda no mito da esposa perfeita,
aquela da qual alguns homens, enquanto pulam valentemente a cerca, dizem:
"Minha mulher é uma santa". Sinto muito, mas nem todas são. Eu até
diria que, mais vezes do que sonhamos, somos umas chatas. Sempre reclamando,
cobrando, controlando, não querendo intimidades, ocupadas em limpar, cozinhar,
comandar, irritar, na crença vã de que boa mulher é a que mantém a casa limpa e
a roupa passada. Seria bem mais humano ter braços abertos, coração cálido,
compreensão, interesse e ternura.
O mito de que a juventude é a glória
demora a ruir, mas deveria. Pois jovem se deprime, se mata, adoece, sofre de
perdas, angustia-se com o mercado de trabalho, as exigências familiares, a
pressão social, as incertezas da própria idade. A juventude – esquecemos isso
tantas vezes – é transformação por vezes difícil, com horizontes nublados e
paulatina queda de ilusões. É fragilidade diante de modelos impossíveis que nos
são apresentados clara ou subliminarmente o tempo todo.
Enfim, a lista seria longa, mas, se a
gente começar a desmitificar algumas dessas imagens internalizadas, começaremos
a ser mais sensatamente felizes. Ou, dizendo melhor: capazes de alegria com
aquilo que temos e com o que podemos fazer numa vida produtiva, porque real."
Lya Luft
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