sábado, 28 de março de 2015

Senhor, o milagre de cada dia nos dai hoje.


Arte de Dima Dmitriev

“Portanto, Senhor, o milagre nosso de cada dia nos dai hoje.

Mesmo que não sejamos capazes de notá-lo, porque nossa mente parece estar concentrada em grandes feitos e conquistas.  Mesmo que estejamos ocupados demais com nosso cotidiano para saber como o nosso caminho foi alterado por ele.

Que, quando estivermos sós e deprimidos, tenhamos os olhos abertos para a vida que nos cerca: a flor nascendo, as estrelas se movendo nos céus, o canto distante do pássaro ou a voz próxima da criança.

Que possamos entender que existem certas coisas tão importantes que é necessário descobri-las sem a ajuda de ninguém. E que nesse momento não nos sintamos desamparados: estamos sendo acompanhados por Vós e estais pronto a interferir se nosso pé se aproximar perigosamente do abismo.

Que possamos seguir adiante apesar de todo o medo e aceitar o inexplicável apesar de nossa necessidade de tudo explicar e conhecer.

Que compreendamos que a força do Amor reside em suas contradições. E que o Amor é preservado porque muda, e não porque permanece estável e sem desafios.

E que, cada vez que virmos o humilde ser exaltado e o arrogante ser humilhado, possamos também ver o milagre.

Que, quando nossas pernas estiverem cansadas, possamos caminhar com a força que existe em nosso coração. Que, quando nosso coração estiver cansado, possamos mesmo assim seguir adiante com a força da Fé.

Que possamos ver em cada grão de areia do deserto a manifestação do milagre da diferença e isso nos encorajará a nos aceitarmos como somos. Porque, assim como não existem dois grãos de areia iguais em todo o mundo, tampouco existem dois seres humanos que pensam e agem da mesma maneira.

Que possamos ter humildade na hora de receber e alegria no momento de dar.

Que possamos entender que a sabedoria não está nas respostas que recebemos, mas no mistério das perguntas que enriquecem nossa vida.

Que jamais fiquemos presos às coisas que julgamos conhecer – porque na verdade pouco sabemos do Destino. Mas que isso nos leve a agir de maneira impecável, utilizando quatro virtudes que devem ser conservadas: ousadia, elegância, amor e amizade.

Senhor, o milagre de cada dia nos dai hoje.

Assim como vários caminhos levam ao topo da montanha, existem muitos caminhos para que possamos atingir nosso objetivo. Que possamos reconhecer o único que merece ser percorrido: aquele onde o Amor se manifesta.

Que antes de despertar o amor nos outros, possamos acordar o Amor que dorme dentro de nós mesmos. Só assim poderemos atrair o afeto, o entusiasmo, o respeito.

Que saibamos distinguir entre as lutas que são nossas, as lutas para as quais estamos sendo empurrados contra a nossa vontade e as lutas que não podemos evitar porque o destino as colocou em nosso caminho.

Que nossos olhos se abram e possamos ver que nunca vivemos dois dias iguais. Cada um trouxe um milagre diferente, que fez com que continuássemos respirando, sonhando e caminhando debaixo do sol.

Que nossos ouvidos também se abram para escutar as palavras certas que surgem de repente da boca de nossos semelhantes – embora não tenhamos nenhum conselho e nenhum deles saiba o que se passa em nossa alma naquele momento.

E que, quando abrirmos as boca, possamos não falar a língua dos homens, mas também a língua dos anjos e dizer: “Os milagres não são coisas que ocorrem contra as leis da natureza; nós pensamos dessa maneira porque na verdade não conhecemos as leis da natureza”.

E que, no momento em que conseguirmos isso, possamos então abaixar a cabeça em respeito, dizendo: “Eu estava certo e consegui ver. Eu estava mudo e consegui falar. Eu estava surdo e consegui ouvir. Porque as maravilhas de Deus se operaram dentro de mim e tudo o que eu julgava perdido retornou”.

Porque assim operam os milagres.  Eles rasgam os véus e mudam tudo, mas não nos deixam enxergar o que existe além dos véus.

Eles nos fazem escapar ilesos do vale das sombras e da morte, mas não dizem por que caminho nos conduziram até as montanhas de alegria e luz.

Eles abrem portas que estavam fechadas com cadeados impossíveis de romper, mas não usam nenhuma chave.

Eles cercam os sóis com planetas para que não se sintam isolados no Universo e impedem que os planetas se aproximem demais para que não sejam devorados pelos sóis.

Eles transforam o trigo em pão através do trabalho, a uva em vinho através da paciência e a morte em vida através da ressurreição dos sonhos.

Portanto, Senhor, dai-nos hoje o milagre nosso de cada dia.

E perdoai-nos se não somos capazes de reconhecê-lo sempre”


Manuscrito Encontrado em Accra, Paulo Coelho

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