Arte de Doronina Tatyana
"Cometa bobagens. Não pense demais porque o
pensamento já mudou assim que se pensou. O que acontece normalmente, encaixado,
sem arestas, não é lembrado. Ninguém lembra do que foi normal. Lembramos do
porre, do fora, do desaforo, dos enganos, das cenas patéticas em que nos
declaramos em público. Cometa bobagens. Dispute uma corrida com o silêncio. Não
há anjo a salvar os ouvidos, não há semideus a cerrar a boca para que o seu futuro
do passado não seja ressentimento. Demita o guarda-chuva, desafie a timidez,
converse mais do que o permitido, coma melancia e vá tomar banho de rio. Mexa
as chaves no bolso para despertar uma porta. Cometa bobagens. Não compre manual
para criar os filhos, para prender o gozo, para despistar os fantasmas. Não
existe manual que ensine a cometer bobagens. Não seja sério; a seriedade é
duvidosa; seja alegre; a alegria é interrogativa. Quem ri não devolve o ar que
respira. Não atravesse o corpo na faixa de segurança. Grite para o vizinho que
você não suporta mais não ser incomodado. Use roupas com alguma lembrança. Use
a memória das roupas mais do que as próprias roupas. Desista da agenda, dos
papéis amarelos, de qualquer informação que não seja um bilhete de trem.
Procure falar o que não vem à cabeça. Cantarolar uma música ainda sem letra.
Deixe varrerem seus pés, case sem namorar, namore sem casar. Seja imprudente
porque, quando se anda em linha reta, não há histórias para contar. Leve uma
árvore para passear. Chore nos filmes babacas, durma nos filmes sérios. Não
espere as segundas intenções para chegar às primeiras. Não diga “eu sei, eu
sei”, quando nem ouviu direito. Almoce sozinho para sentir saudades do que não
foi servido em sua vida. Ligue sem motivo para o amigo, leia o livro sem
procurar coerência, ame sem pedir contrato, esqueça de ser o que os outros
esperam para ser os outros em você. Transforme o sapato em um barco, ponha-o na
água com a sua foto dentro. Não arrume a casa na segunda-feira. Não sofra com o
fim do domingo. Alterne a respiração com um beijo. Volte tarde. Dispense o
casaco para se gripar. Solte palavrão para valorizar depois cada palavra de
afeto. Complique o que é muito simples. Conte uma piada sem rir antes. Não
chore para chantagear. Cometa bobagens. Ninguém lembra do que foi normal. Que
as suas lembranças não sejam o que ficou por dizer. É preferível a coragem da
mentira à covardia da verdade.
Fabrício Carpinejar.
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