terça-feira, 15 de maio de 2012

E quando o texto acaba a escrita continua.




Pessoas mudas escrevem pra falar. Analfabetos aprendem a escrever. Pessoas sem braços escrevem com os pés. Os surdos escrevem no ar com gestos. Os cegos escrevem com a voz no escuro. Pessoas que esquecem escrevem listas. Canhotos escrevem com a mão esquerda. Pessoas distantes escrevem cartas. O tempo escreve no rosto rugas. Nas palmas linhas, nas pintas pontos. E nas estrelas cadentes. E nas cadeias escrevem nas paredes. E nas carteiras de escola. Neurônios escrevem na memória. Os genes escrevem nos corpos vivos. A chuva que escorre escreve nos vidros. E os dedos nos embaçados. E nas cavernas traçados de antepassados. Bisontes, flechas, humanos, arcos. E os médicos nas receitas. Orientais usam outras letras. De cima a baixo, nas verticais. E começando sempre por trás. Nos livros, placas e nos mangás. Escreventes, escrivães, escritores, escribas. Uns tomam notas pra se lembrar. Uns fazem livros pra ser lembrados. Passos escrevem no chão com rastros. Corvos espalham nanquim no alto. Galinhas grafam bicando o chão. Migalhas fazem frases do pão. Palavras ditas morrem no ar. Em pedra escrevem nomes dos mortos. E em placas de rua. E quando o texto acaba a escrita continua.

Arnaldo Antunes  in N.d.a 


Arte de  Wendy Ng




nenhuma das alternativas

me seduz -

nem a voz do deserto

nem a mão que conduz

nem o sonho desperto

nem o lustro da luz

nenhuma das alternativas

me convence -

nem a bola que rola

nem o time que vence

nem a chuva que chora

nem a água que benze

nenhuma das alternativas

me desperta -

nem a borda que alarga

nem a corda que aperta

nem a boca que amarga

ou o açúcar que empedra...


Arnaldo Antunes

Nenhum comentário: