Arte de Dima Dmitriev
“Portanto, Senhor, o milagre nosso de cada dia
nos dai hoje.
Mesmo que não sejamos capazes de notá-lo, porque
nossa mente parece estar concentrada em grandes feitos e conquistas.
Mesmo que estejamos ocupados demais com nosso cotidiano para saber como o
nosso caminho foi alterado por ele.
Que, quando estivermos sós e deprimidos,
tenhamos os olhos abertos para a vida que nos cerca: a flor nascendo, as
estrelas se movendo nos céus, o canto distante do pássaro ou a voz próxima da
criança.
Que possamos entender que existem certas coisas
tão importantes que é necessário descobri-las sem a ajuda de ninguém. E que
nesse momento não nos sintamos desamparados: estamos sendo acompanhados por Vós
e estais pronto a interferir se nosso pé se aproximar perigosamente do abismo.
Que possamos seguir adiante apesar de todo o
medo e aceitar o inexplicável apesar de nossa necessidade de tudo explicar e
conhecer.
Que compreendamos que a força do Amor reside em
suas contradições. E que o Amor é preservado porque muda, e não porque
permanece estável e sem desafios.
E que, cada vez que virmos o humilde ser
exaltado e o arrogante ser humilhado, possamos também ver o milagre.
Que, quando nossas pernas estiverem cansadas,
possamos caminhar com a força que existe em nosso coração. Que, quando nosso
coração estiver cansado, possamos mesmo assim seguir adiante com a força da Fé.
Que possamos ver em cada grão de areia do deserto
a manifestação do milagre da diferença e isso nos encorajará a nos aceitarmos
como somos. Porque, assim como não existem dois grãos de areia iguais em todo o
mundo, tampouco existem dois seres humanos que pensam e agem da mesma maneira.
Que possamos ter humildade na hora de receber e
alegria no momento de dar.
Que possamos entender que a sabedoria não está
nas respostas que recebemos, mas no mistério das perguntas que enriquecem nossa
vida.
Que jamais fiquemos presos às coisas que
julgamos conhecer – porque na verdade pouco sabemos do Destino. Mas que isso
nos leve a agir de maneira impecável, utilizando quatro virtudes que devem ser
conservadas: ousadia, elegância, amor e amizade.
Senhor, o milagre de cada dia nos dai hoje.
Assim como vários caminhos levam ao topo da
montanha, existem muitos caminhos para que possamos atingir nosso objetivo. Que
possamos reconhecer o único que merece ser percorrido: aquele onde o Amor se
manifesta.
Que antes de despertar o amor nos outros,
possamos acordar o Amor que dorme dentro de nós mesmos. Só assim poderemos
atrair o afeto, o entusiasmo, o respeito.
Que saibamos distinguir entre as lutas que são
nossas, as lutas para as quais estamos sendo empurrados contra a nossa vontade
e as lutas que não podemos evitar porque o destino as colocou em nosso caminho.
Que nossos olhos se abram e possamos ver que
nunca vivemos dois dias iguais. Cada um trouxe um milagre diferente, que fez
com que continuássemos respirando, sonhando e caminhando debaixo do sol.
Que nossos ouvidos também se abram para escutar
as palavras certas que surgem de repente da boca de nossos semelhantes – embora
não tenhamos nenhum conselho e nenhum deles saiba o que se passa em nossa alma
naquele momento.
E que, quando abrirmos as boca, possamos não
falar a língua dos homens, mas também a língua dos anjos e dizer: “Os milagres
não são coisas que ocorrem contra as leis da natureza; nós pensamos dessa
maneira porque na verdade não conhecemos as leis da natureza”.
E que, no momento em que conseguirmos isso,
possamos então abaixar a cabeça em respeito, dizendo: “Eu estava certo e
consegui ver. Eu estava mudo e consegui falar. Eu estava surdo e consegui
ouvir. Porque as maravilhas de Deus se operaram dentro de mim e tudo o que eu
julgava perdido retornou”.
Porque assim operam os milagres. Eles
rasgam os véus e mudam tudo, mas não nos deixam enxergar o que existe além dos
véus.
Eles nos fazem escapar ilesos do vale das
sombras e da morte, mas não dizem por que caminho nos conduziram até as
montanhas de alegria e luz.
Eles abrem portas que estavam fechadas com
cadeados impossíveis de romper, mas não usam nenhuma chave.
Eles cercam os sóis com planetas para que não se
sintam isolados no Universo e impedem que os planetas se aproximem demais para
que não sejam devorados pelos sóis.
Eles transforam o trigo em pão através do
trabalho, a uva em vinho através da paciência e a morte em vida através da
ressurreição dos sonhos.
Portanto, Senhor, dai-nos hoje o milagre nosso
de cada dia.
E perdoai-nos se não somos capazes de
reconhecê-lo sempre”
Manuscrito Encontrado em Accra, Paulo Coelho
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