Arte de Michal Zahornacky
"Sai, corre logo. Afasta-te das ventanias cruéis que ameaçam
revirar-te a vida e os sonhos pelo avesso. Aqueles pedaços de histórias
rotas e cerzidas, atiradas no cesto de roupas de sorrir — e que já
usaste tantas vezes em festas enxovalhadas. Foge das tempestades. Das
estradas sem rumo. Das folhas ressequidas, espalhadas em terrenos áridos
e desconexos.
Rejeita os lábios que não beijam mais e dos quais escorre apenas
amargura, fel e impropérios. Sim. Tranca a porta, os ouvidos, a sensatez
e vira as costas sem remorsos para tudo o que te causa mal e tristezas.
Teus dias pinta-os com aquarelas leves e doces, mescladas a tons
pastel.
As horas não devem ser transformadas inexoravelmente em cinzas, quem
te disse? Embora saibamos que se trata de horas mortas, inertes em
relógios de parede enferrujados pelo cansaço. Relógios, cujos ponteiros
foram derretidos pelos vastos incêndios que se apossaram silentes da tua
alma atônita.
Sai! Despede-te rapidamente das águas turvas, habitadas apenas por
sinuosas enguias. Não enxergas peixes dourados, nem vermelhos? O lodo
não te serve, então. Tampouco a escuridão de um dia sem sóis nem
estrelas. As árvores morreram alguns tocos ainda repousam no jardim
abandonado. Raízes secas gemem por água. Mas o jardineiro se foi,
levando junto com as despedidas os antigos cuidados dispensados ao verde
que aí vicejava.
Há esconderijos disponíveis para cultivar a paz. Um sentimento que
parece ter escorrido pelas vielas de tempos imorredouros. Olha e te
surpreende. Pois há linhas de seda para tricotar novas promessas de
amores leves, já nascidos com asas. Amores azuis que flertam com a
presença suprema da liberdade.
Se porventura entrares num bar escuro e sujo e perceberes que os
frequentadores flertam somente com o álcool mantendo o rosto duro,
impassível e macilento. Os olhos de pedra fosca cravados no fundo do
copo, no qual mágoas flutuam sobre escassas pedras de gelo, não te
aproximes. Abandona o recinto. Pois aí não há amor. Somente amarguras e
nostalgias graves e empoeiradas
Foge também de quem tiver o aperto de mão indiferente e áspero, os
sorrisos ausentes no rosto exausto de mentiras, o nariz empinado de
arrogâncias vãs.
Despreza indivíduos sem ouvidos, concentrados em lamber unicamente a
própria fala.
Àqueles aficionados em solilóquios, em discursos sem eco,
voltados regiamente para o próprio espelho das vaidades, adornado pelo
gigantismo do ego.
Alheia-te também de quem perdeu os braços de abraçar. Esqueceu-se de
abrir as janelas para as visitas das alvoradas e lacrou os sentidos para
os cantos felizes dos pássaros matutinos.
Os que não regam plantas. Pais que esquecem crianças trancadas no
carro, enquanto se deleitam em levianas compras nos shoppings. Não
entres jamais em casas onde não se escuta música, aonde o fogão chore de
desusos, sem o cheiro vivo do feijão fumegando delícias.
Não te acomodes nunca em mesas sem toalhas, copos, nem talheres,
antes destinados a servir convidados sempre ausentes. Ninguém aparecerá
para o almoço inexistente. Pois faltam amor e acolhimentos.
Não te esqueças de cerrar em seguida as cortinas do coração para os
que desprezam a luz, as cirandas e as crianças. Os que chutam por tédio
pequeninos animais órfãos, perdidos a esmo nas ruas. Refuta com
veemência as trepadas mornas e maquínicas exigidas pelo marido ou
namorado, cujas ardorosas amantes tu intuis, certamente.
O bom sexo demanda uivos gloriosos, saudáveis e selvagens desatinos.
Assim, aguarda paciente pela entrega plena e desarmada. Ela virá sem
avisos prévios e te surpreenderá com danças e valsas. Recusa de imediato
o namoro insípido, porque não há sal que dê jeito em afetos falidos.
Outro alerta: desanda a correr da inveja, do escárnio, do ódio
fantasiado de gentilezas em oferta. Todas elas por R$9,99. Este pacote
de desmazelos se acumula no enfado e no desamor de lojas vazias. A
maldade ronda a vizinhança, se intromete em eclipses, passeia com os pés
descalços em imensos desertos brancos.
Mas lá tu não irás, temos certeza, pois falta amor — teu coração já
anunciou. Além disso, felizmente também contas com os afáveis sussurros
da natureza, que entremeiam tuas histórias e caminhos, sempre rodeados
de ideais e de esperanças."
Graça
Taguti
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