Arte de Louis Gaillard
Como se não houvesse amanhã
Lá fora é perigoso, porque o mundo está cheio de
perversos e irresponsáveis, mas é para onde todos temos que ir.
É fácil
evocar o que pensamos em momentos de agradável intensidade: “azar, não posso
deixar de viver por medo, é tão legal que podia acabar agora”. Já pensei isso.
Quantas vezes nos colocamos em situações de risco ou, pelo menos, naquelas em
que o bom senso não impera? Não negue, mesmo que você seja o rei da precaução,
todos nós já fomos apresentados à cara do perigo. Sair à noite em nossa sociedade
violenta, beber mais do que gostaríamos, estar em um lugar confinado, fazer uma
aventura arriscada de carro, escaladas, voar de asa delta, tomar banho em
cachoeira, dirigir bêbado, subir no carro do amigo destemido ou alcoolizado,
ficar íntimo de alguém que não se conhece, frequentar ruelas escuras. A lista é
longa.
Essa
leveza beirando a irresponsabilidade é coisa típica da juventude, mas também,
com sorte, reencontramos esse sentimento mais adiante. Os jovens vivem momentos
festivos de euforia coletiva, atravessam juntos uma noite que faz o tempo
parecer infinito. A festa é nossa desde o início dos tempos e costumava ser um
momento sagrado, onde os excessos e descontroles eram prescritos. Hoje
celebra-se a alegria, a força vital, o direito de dançar de qualquer jeito, só
pelo prazer de partilhar o ritmo com os amigos e contemporâneos.
Jovens se
arriscam, mas desta vez o culpado é outro. A tragédia de Santa Maria, causada
por irresponsáveis que, espero, serão descobertos e punidos, não foi culpa
deles, que estavam divertindo-se, nem da permissividade das famílias que não os
acorrentaram em casa. Eles acorreram ao evento sem conferir se havia saídas de
emergência, portas corta-fogo. Mas isso não era tarefa deles. A alegria
pressupõe a confiança de que vai dar tudo certo. A felicidade é otimista, por
isso muitas vezes envolve riscos, que devem ser sanados por aqueles que têm a
diversão alheia como forma de trabalho. Vale para uma festa, um parque de
diversões ou um programa de mergulho.
Investigações
e punições são uma dívida com as vítimas. Mas as famílias e os amigos
sobreviventes não terão nada devolvido com isso, já perderam o essencial:
aquela mínima isenção do medo e da culpa que nos ajuda a viver. A morte,
principalmente em sua face trágica e quando se perde um jovem, é a maior
experiência de impotência. Nada porta o sem-sentido da vida como a inclemência
do fim, principalmente o de quem teve reduzido o tempo de dizer a que veio.
Perder um
filho é a pior das mortes, é um assassinato da esperança, impossível de
assimilar. Cuidamos zelosamente nossos descendentes, pois seguirão nossos
passos quando cessarmos. Sua morte é um milhão de vezes mais insuportável que a
nossa, restamos sem sua transcendência. Um filho morto diminui a chance nos
tornarmos lembrança. Apesar disso, não podemos ser egoístas e guardá-lo numa
redoma, esperando que viva para nos cultuar.
Sou mãe
de duas jovens da idade da maior parte das vítimas da boate Kiss. Tanto quanto
elas, estivemos muitas vezes em muitos lugares assim. Se meus pais tivessem me
impedido, se eu proibisse minhas filhas de viver seu tempo, certamente sua
segurança estaria melhor garantida. Porém, um filho cerceado em sua liberdade é
alguém cujo corpo é confinado para que sua mente só se ocupe de amar aos pais.
Lá fora é perigoso, porque o mundo está cheio de perversos e irresponsáveis,
mas é para onde todos temos que ir.
Diana L.Corso
Extremo-Oeste de Sc em luto por Isabella
Fiorini, de 19 anos, de São Miguel do Oeste, Thaís Zimmermann Darif, de
19 anos, de Guaraciaba, Bruna Karoline Occai, de 24 anos, de Belmonte e
Marina de Jesus Nunes, de Maravilha. Elas estão entre os mais de 230 jovens
que morreram após um incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, no Rio
Grande do Sul.
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